O vazio assistencial é uma expressão clara da desigualdade na saúde do Brasil. Ele surge quando a estrutura disponível seja as unidades, profissionais, equipamentos ou a organização da rede não consegue acompanhar as necessidades da população. O termo costuma aparecer em planejamentos e estudos de saúde pública, mas seu impacto é real e cotidiano, especialmente em territórios periféricos, rurais ou de difícil acesso. Nesses locais, o direito à saúde existe na lei, mas não se concretiza na prática.
Essas lacunas não se resumem à ausência de prédios ou serviços. Em muitos casos, as unidades até existem, mas funcionam com equipes incompletas, horários reduzidos ou equipamentos que não dão conta da demanda. A dificuldade de fixar profissionais em áreas remotas também contribui, fragilizando a atenção primária, que é responsável pela prevenção, acompanhamento de doenças crônicas e orientação da população. Quando essa base não funciona, todo o sistema se torna mais lento, desigual e sobrecarregado.
As consequências são sentidas diretamente no cotidiano das pessoas: longas filas, atrasos em diagnósticos simples, deslocamentos exaustivos para encontrar especialistas e a dependência de municípios vizinhos que acabam atendendo além da sua capacidade. Problemas que poderiam ser resolvidos com rapidez tornam-se crônicos, agravam quadros de saúde e afetam a qualidade de vida. A falta de acesso também impacta trabalho, estudo, renda e organização familiar. Segundo a revista Visão Hospitalar, existe um déficit de 68% na oferta de leitos de transição no país, considerados essenciais para reduzir reinternações e garantir continuidade do tratamento. Esse número revela um vazio assistencial concreto: pacientes que têm alta hospitalar, mas não encontram suporte adequado para terminar sua recuperação.
Em relação a saúde mental, Sandra Madeu, psicóloga e atendente de acolhimento psicológico no SUS, é enfática. “O Brasil tem enfrentado nos últimos anos um significativo aumento na demanda por serviços na saúde mental, principalmente desde a pandemia de Covid-19, evidenciando a insuficiência da rede pública para atender as necessidades da população. Fatores como isolamento social, luto, crise econômica contribuíram para o aumento expressivo na demanda, deixando muitos pacientes sem a assistência necessária, impactando principalmente para os menos favorecidos”, explica Sandra Madeu.
Por que mapear esses vazios é essencial
O estudo Demografia Médica no Brasil 2025, publicado pelo Ministério da Saúde, AMB e USP, confirma que a maior parte dos médicos especialistas se concentra no Sudeste.
Os dados mostram que:
- 55,4% dos especialistas estão no Sudeste, a região mais estruturada do país;
- Apenas 5,9% estão no Norte, a região com maior dispersão geográfica e piores indicadores de acesso.
Isso significa que os estados do Norte, onde o deslocamento entre municípios pode ultrapassar centenas de quilômetros, contam com menos profissionais. Mapear os vazios assistenciais é um passo decisivo para compreender onde o cuidado não chega e por quê. O diagnóstico territorial permite identificar regiões onde a cobertura da atenção básica é insuficiente, onde há falhas estruturais ou falta de profissionais, e onde a rede de atenção não se articula de forma eficiente. Esse processo orienta políticas públicas e investimentos, garantindo que os recursos sejam direcionados para os territórios que realmente precisam deles.
O mapeamento também evita desequilíbrios na distribuição das equipes, previne sobrecargas em municípios vizinhos e oferece uma visão estratégica da capacidade real de atendimento. Sem esse retrato, decisões podem ser tomadas de forma fragmentada, tratando sintomas em vez de resolver causas. Conhecer os vazios é, portanto, parte fundamental de qualquer política séria de fortalecimento do SUS.
Caminhos para reduzir os vazios assistenciais
Enfrentar esse desafio exige ações integradas. É necessário fortalecer a atenção primária, garantindo equipes completas e presentes no território; criar políticas que estimulem a permanência de profissionais em regiões vulneráveis; investir em infraestrutura e transporte sanitário; e ampliar o uso de tecnologias como a telemedicina, que aproxima o cuidado mesmo onde a estrutura física é limitada. Além disso, o planejamento contínuo é fundamental para impedir que novos vazios surjam ou que antigos se repitam.
Na saúde mental, por exemplo, Sandra Madeu ressalta que são necessários investimentos em políticas públicas que ampliem a rede CAPS, leitos psiquiátricos, aumento de especialistas da área por meio de concursos públicos e capacitação dos profissionais da atenção básica. “É necessário também campanhas informativas para combater o estigma social que dificulta a busca por ajuda psicológica”, completa.
O foco está na equidade. Reduzir os vazios assistenciais significa reconhecer que diferentes territórios têm necessidades específicas e que a universalidade da saúde só se torna real quando considerada com esse olhar. Garantir que o cuidado chegue onde ele ainda não chega é fortalecer um SUS que acolhe, protege e responde às realidades de cada brasileiro.