Há três décadas, o Brasil vivia um dos seus períodos econômicos mais desafiadores: a hiperinflação. Preços que mudavam a cada hora, remarcações constantes nos supermercados e a incerteza corroendo o poder de compra dos brasileiros eram a dura realidade.
Em meio a esse cenário caótico, surgia o Plano Real, uma aposta audaciosa que, contra todas as expectativas de muitos, não só conteve a escalada inflacionária, mas também estabilizou a economia e redefiniu a vida financeira do país.
Para falar sobre o tema, convidamos o professor Márcio de Oliveira Júnior, que possui Doutorado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006). É graduado em Economia (UFMG) e em Direito (UniCEUB – Brasília). Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia da Concorrência, Economia Internacional e em Economia Regional e Urbana.
Fundação 1° de Maio: “Professor, você poderia nos explicar o que é a hiperinflação e linkar com os assuntos que estão hoje preocupando a vida dos brasileiros, como o preço dos alimentos e a inflação dos valores que estão cada dia mais altos?”
Professor Márcio: “A inflação é, fundamentalmente, a variação percentual de um conjunto de preços de bens e serviços na economia. Para entender isso, imagine uma “cesta” de itens que as pessoas consomem no dia a dia. A inflação mede como o preço médio dessa cesta evolui ao longo de um determinado período, geralmente mês a mês, embora existam cálculos semanais ou quinzenais. O que a maioria dos consumidores acompanha, no entanto, é a inflação mensal e a anual.
Para chegar a esse número, são realizadas três pesquisas cruciais. Primeiro, a POF (Pesquisa de Orçamento Familiar), que mapeia quais produtos e serviços são consumidos e qual o peso médio de cada um no orçamento das famílias. É como descobrir quanto, em média, as pessoas gastam com alimentação, moradia, transporte, etc. Segundo, há a pesquisa de especificação de produtos, que assegura que a comparação seja feita entre itens idênticos. Não se pode comparar o preço de um pão de forma comum em um mês com o preço de um pão de forma com grãos no mês seguinte; precisa ser o mesmo produto para uma comparação válida.
Por fim, a terceira pesquisa é a dos locais de compra. É fundamental comparar o mesmo produto vendido no mesmo tipo de estabelecimento. Não faria sentido comparar o preço de um item vendido em um atacado com o mesmo item vendido em um supermercado mais caro, pois os preços seriam naturalmente diferentes. Todas essas etapas garantem que a inflação seja uma medida precisa de como o poder de compra da população está sendo afetado pela variação dos preços.
A hiperinflação é caracterizada por um aumento extremamente rápido e descontrolado dos preços, fazendo com que o valor da moeda se deteriore em uma velocidade assustadora. No Brasil, essa realidade foi vivenciada intensamente no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, com índices de inflação que, em alguns anos, ultrapassaram os 1.600% e até quase 2.500% em 12 meses, como em 1993. Isso significa que, em questão de semanas ou até dias, os preços podiam dobrar, quadruplicar, ou mais.
Essencialmente um fenômeno monetário, a hiperinflação demonstra que a moeda perde seu poder de compra de forma drástica. Quem recebia um salário no início do mês via seu dinheiro valer muito menos ao final, já que os preços dos produtos subiam constantemente. Um exemplo clássico, embora externo, é o da Alemanha na década de 1920, onde as pessoas pagavam por cervejas antes mesmo de as consumirem, temendo que o preço aumentasse durante o tempo que levavam para bebê-las.”
Para tentar mitigar os efeitos devastadores da hiperinflação, os brasileiros daquela época adotavam estratégias como encher freezers com alimentos logo após receberem o salário, pois sabiam que, se esperassem para comprar ao longo do mês, o dinheiro não teria o mesmo poder de compra. Felizmente, o Brasil conseguiu superar esse cenário caótico com o lançamento do Plano Real em julho de 1994, que trouxe a tão necessária estabilidade econômica e monetária.

Fundação 1° de Maio: “Bom, professor, seria possível explicar quais foram os fatores que levaram a essa situação naquela época?”
Professor Márcio: “Na década de 80, aconteceu um desequilíbrio fiscal no Brasil. Porque havia um déficit fiscal bastante alto, e esse déficit foi financiado em parte com dívida pública, em parte com a emissão de moeda, então houve uma emissão grande de moeda. E como eu te falei, a inflação é um fenômeno monetário, é a perda de valor da moeda. Então na medida em que se imprimia muita moeda, se emitia muita moeda, a moeda perdia valor rapidamente. E isso se substanciou por meio da inflação mais elevada. Então foi esse o surgimento da inflação. O Brasil tinha uma particularidade, que era a indexação, a correção monetária.
Então havia inflação, os preços eram corrigidos de acordo com a inflação passada. Isso gerou o que se chamava de inércia inflacionária. A inflação era alta hoje porque ela foi alta no passado.
A combinação dessas questões, do desequilíbrio fiscal, do financiamento do desequilíbrio fiscal por meio de emissão monetária e da existência de indexação acabou levando à hiperinflação no final dos anos 1980, começo de 1990”
Função 1° de Maio: “E como aconteceu? Por que o plano real conseguiu controlar toda essa situação, enquanto os outros não conseguiram?”
Professor Márcio: “No final dos anos 1970 e início dos 1980, o Brasil enfrentava uma alta dívida externa que se agravou com o choque de juros nos Estados Unidos. Isso aumentou drasticamente os pagamentos em dólar do Brasil, levando o país a declarar moratória na segunda metade dos anos 80, o que prejudicou severamente sua relação com o sistema financeiro internacional e a entrada de dólares. A situação só começou a se resolver no início dos anos 90, quando o Brasil renegociou sua dívida externa, normalizando suas relações financeiras globais e permitindo a retomada do fluxo de capitais e o acúmulo de reservas internacionais, um ponto crucial para o Plano Real.
Paralelamente, os planos econômicos anteriores falharam porque não atacavam a raiz fiscal da hiperinflação. O Plano Real, então, introduziu medidas para corrigir o desequilíbrio fiscal. Outro problema dos planos anteriores era o desequilíbrio de preços relativos, causado por congelamentos que impediam que alguns preços acompanhassem a inflação, criando distorções na economia. Isso significava que, tão logo o congelamento acabasse, esses preços voltariam a subir rapidamente para reajustar-se.”
Para resolver isso, o Plano Real introduziu a URV (Unidade Real de Valor) alguns meses antes do lançamento da nova moeda. A URV funcionava como uma “moeda virtual”, uma unidade de conta na qual todos os preços eram expressos. O valor da URV em relação à moeda corrente da época (o Cruzeiro Real) mudava diariamente, super indexando a economia e alinhando os preços. Quando o Real foi finalmente lançado, equivalente a uma URV, os preços já estavam estabilizados em suas relações relativas, eliminando um dos maiores obstáculos dos planos anteriores.
“A terceira perna do sucesso do Plano Real foi a âncora cambial. Ao manter a paridade de um Real aproximadamente igual a um dólar, criou-se um mecanismo de disciplina para os produtores domésticos. Se aumentassem muito seus preços em Real, seus produtos ficaram caros em Dólar e perderam competitividade para importados. Isso desestimulava aumentos abusivos, desviando a demanda para produtos estrangeiros e forçando os produtores nacionais a manterem seus preços estáveis. Essa estratégia só foi possível graças às reservas internacionais acumuladas e à normalização das relações financeiras do Brasil, que permitiram financiar o eventual aumento das importações. Assim, o Plano Real se sustentou em um tripé: ajuste fiscal, eliminação do desequilíbrio de preços relativos via URV e a âncora cambial.
Função 1° de Maio: “Professor, seria possível fazer um paralelo disso com a inflação que a gente vive hoje?”
Professor Márcio: “Hoje nós não temos hiperinflação no Brasil. Desde 94 nós não temos hiperinflação. A inflação no Brasil, hoje, nós trabalhamos com um regime chamado de metas de inflação.
Isso significa que o Conselho Monetário Nacional define um centro da meta e uma margem em torno desse centro da meta. Então a nossa meta hoje é 3% ao ano, bastante baixa. Nós chegamos a ter 2.500% em 93, então 3% inflação baixa e uma margem de tolerância de 1,5 para baixo ou para cima.
Então a inflação pode variar de 3 menos 1,5, 1,5% ao ano, até 3 mais 1,5, 4,5% ao ano. Essa é a banda que nós perseguimos. Quando a inflação está saindo desse intervalo, 1,5 a 4,5% ao ano, a gente usa a política monetária, a política de juros para endereçar o problema.
Então o que aconteceu? A inflação aumentou, saiu desse intervalo, o que aconteceu com a taxa de juros? Ela aumentou, aumentou para debelar a inflação, para trazer a inflação, melhor dizendo, para dentro desse intervalo que eu descrevi. Então é assim que funciona no Brasil desde 1999. Nós temos o sistema de metas de inflação.
Então é uma situação bastante diferente do que nós vivemos até 1994. Eu acho que não tem risco hoje de ter hiperinflação no Brasil da forma que nós tivemos no final da década de 80, começo dos anos 1990.”
Apesar do desconforto generalizado com os preços, o Brasil não está enfrentando um cenário de hiperinflação. Embora a inflação atual esteja ligeiramente acima do teto da meta (4,5%), isso está muito distante dos aumentos descontrolados observados no final dos anos 1980 e início dos 1990. A política monetária, por meio da taxa de juros, já está atuando para trazer a inflação de volta ao intervalo da meta (1,5% a 4,5% ao ano).
A percepção de que os preços estão muito altos, e que a população está mais “pobre”, é um reflexo do custo de vida elevado em decorrência de eventos recentes. Fatores como a alta emissão de moeda no final da pandemia, a Guerra na Ucrânia e problemas nas cadeias globais de suprimento elevaram o nível geral de preços.
Isso significa que, embora os preços tenham subido e o custo de vida esteja maior, a velocidade de aumento desses preços (a inflação em si) é controlada e incomparável à hiperinflação. Para famílias de baixa renda, que destinam uma parcela maior de seus gastos à alimentação, o impacto do aumento dos preços dos alimentos é mais sentido, gerando uma sensação ainda maior de perda de poder de compra. No entanto, o Brasil, felizmente, superou o pesadelo da hiperinflação em julho de 1994 com o Plano Real.