Há 137 anos, no dia 13 de maio, um domingo, ocorria a promulgação da Lei Áurea que previa, em simplórios dois curtos parágrafos, a abolição da escravidão no Brasil e assim decretava, tardiamente, o fim deste sistema que imperou neste país por quase 400 anos. Para além de ter sido o país que mais recebeu pessoas escravizadas – cerca de 4 milhões de seres humanos foram arrancados de África e forçadamente trazidos para cá -, o Brasil também foi o último país das Américas a abolir a escravidão.
Embora tenha estabelecido o fim da escravidão em 1888, 137 anos depois o país ainda vivencia reflexos muito presentes dessa triste página de sua história e muito disso em decorrência da completa ausência de políticas públicas que objetivassem a inclusão social da população negra recém liberta, bem como mecanismos de indenização. E, ao pensarmos em políticas de reparação, espantamo-nos ao rememorarmos que as cotas raciais chegaram em algumas instituições públicas de ensino superior somente no começo dos anos 2000 e a própria lei de cotas, Lei 12.711, é datada de 2012. Os fatos expostos evidenciam o que se propõe neste artigo: discutir a falsa libertação da população negra proposta no dia 13 de maio e como isso contribuiu para enraizar as desigualdades raciais no país.
Em um país no qual o modelo econômico e social era estruturado sob o pilar escravocrata por quase quatro séculos, o rompimento desse status quo necessitaria de uma série de ações – em especial provenientes do Estado – para que aquela população liberta pudesse ser inserida social e economicamente. O fato disso não ter ocorrido evidencia a falácia propagada da libertação da população negra por meio da Lei Áurea. A bem da verdade, a forma como se deu a libertação dos escravizados foi um fator institucional que fomentou e agravou, sobremaneira, a desigualdade racial brasileira, apartando a população negra e marginalizando-a da sociedade.
- Art. 1.° E’ declarada extincta, desde a data desta Lei, a escravidão no Brazil.
- Art. 2.° Revogam-se as disposições em contrario
Sequencialmente à Lei Áurea, outros dispositivos legais foram estabelecidos no Brasil e dificultaram, ainda mais, a inserção da população negra à nova realidade brasileira, tem-se por exemplo o estabelecimento do código penal de 1890, Decreto Nº 847 de 11 de outubro, – dois anos após a promulgação da Lei Áurea – no qual previa-se a penalização por “vadiagem”, assim como à prática de capoeira – luta e manifestação cultural criada pelos negros escravizados nos engenhos.
- Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes: Pena – de prisão cellular por quinze a trinta dias.
- Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena – de prisão cellular por dous a seis mezes
Estes fatores, somados ao enraizamento cultural e institucional perpetrados por um modelo escravista, contribuíram para a marginalização da população negra que fora “liberta” com a promulgação da Lei Áurea. O Estado, à época, acentuou significativamente as desigualdades raciais no Brasil a partir do momento em que não se preocupou em estabelecer mecanismos de integração laboral, econômica e social da população negra – e também por não considerar a efetividade de políticas reparadoras e/ou indenizatórias aos mesmos. Embora a libertação da população escravizada seja efetivamente um avanço, ainda que tardio no Brasil, a realidade apresentada destoou muito do cenário teórico que poderia ter sido desenhado com a efetivação da mesma.
Tão logo a Lei Áurea foi promulgada, a população negra deparou-se diante de uma realidade formada pela ausência de trabalho formal, desprovida de propriedade e moradia, e socialmente marginalizada. O cidadão negro que não possuía um ofício formal ou uma residência, estava passivo a ser penalizado judicialmente pelo Estado, sendo o próprio Estado o principal agente para esta situação. Se tornava também refém desta engrenagem legal mal desenhada, por não poder manifestar a capoeira, algo tão enraizado em si e marca de sua luta de resistência, pois como dito anteriormente, esta prática também fora condenada pela lei penal à época. Assim sendo, a Lei Áurea – posta da forma como ocorreu – foi um marco de sucessivos erros por parte do Estado para com a população negra, perpetuando, ainda que fora dos grilhões dos engenhos e casas-grandes, as atrocidades acometidas na época da escravidão.
E isso se reflete ainda hoje. Muito embora tenhamos um país composto em sua maioria pela população negra, as desigualdades raciais são presentes e gritantes nas mais diversas camadas sociais do Brasil. Dados do Censo de 2022 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 55,5% da população brasileira auto declara-se como negra – 10,2% auto declarados pretos e 45,3% auto declarados pardos. Todavia, essa maioria não se reflete positivamente quando são considerados outros fatores sociais e econômicos.
Dados apresentados pelo Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (CEDRA) apontam que a renda média do trabalhador negro corresponde a 58,3% da renda média de pessoas brancas. No campo educacional, a discrepância racial também se revela evidente: dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mostram que 29,5% de pessoas brancas com idade entre 18 e 24 anos cursavam o ensino superior, enquanto que este número para as pessoas negras na mesma faixa etária é de 16,4%. Na seara de dados sobre violência, a diferença entre negros e brancos fica ainda mais evidente, relatório da Unicef de 2024 – Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil – revelou que o Brasil possui a triste marca de 5 mil crianças e adolescentes assassinadas por ano, sendo que nas idades compreendidas entre 10 a 14 anos, 79,5% são negras, e de 15 a 19, 83,6%. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, os negros representam 69,1% da população prisional.
A desigualdade racial no Brasil é fruto de uma construção social e institucional que é datada desde a chegada do primeiro navio negreiro trazendo a população africana escravizada para o país. Foram séculos de um sistema fundamentado no tratamento desigual tendo por premissa a cor da pele das pessoas e que, muito embora tenhamos avançado em diversos quesitos, ainda se encontram enraizados em nosso presente cotidiano. A verdadeira abolição da escravidão ocorre quando o Brasil enxerga a si mesmo, reconhece-se em seu racismo velado para trazê-lo a luz e, em uma reconstrução conjunta, possa estabelecer uma sociedade antiracista que rompe com essa realidade construída por anos, mas que não deve ser tolerada como coexistente em pleno 2025. Somente assim poderemos, de fato, ver o dia 13 de maio e a Lei Áurea como ações para se celebrar.